Refrações de Rodolfo Quinafelex sobre o texto “A Construção”, de Franz Kafka (relacionado com o texto “O Artista da Fome”).
“Instalei a construção. E ela parece bem-sucedida. Com cálculos bastante laboriosos. E a alegria que a mente sagaz tem consigo mesma é algumas vezes o único motivo pelo qual se continua calculando. Preciso ter a possibilidade de uma saída imediata, pois apesar de toda a vigilância, não posso eu ser atacado por um flanco totalmente inesperado? Seja como for, preciso ter a garantia de que em alguma parte, talvez exista uma saída fácil de alcançar, completamente aberta, onde para me evadir já não tenha mais de trabalhar, de tal modo que, enquanto estiver escavando desesperadamente, ainda que seja num aterro leve, eu não sinta de repente os dentes do perseguidor nas minhas coxas.” (Franz Kafka)
“Não são apenas os inimigos externos que me ameaçam. Existem também os que vivem dentro do chão. Nunca os vi ainda, mas as lendas falam a seu respeito e creio firmemente nelas. Eles chegam, ouve-se o arranhar das suas unhas logo embaixo na terra, que é seu elemento, e já se está perdido. Aqui não importa que se esteja na própria casa, pois o fato é que se está na casa deles. Também aquela saída não me salva, como provavelmente ela não me salva em caso algum, antes me arruína. Entretanto, é uma esperança, e eu não posso viver sem ela.” (p. 34) (Franz Kafka)
Ambiguidade, imprecisão e hesitação. Um labirinto que articula movimentos de rememorar o passado e abandonar antigos hábitos, entre planos e resistências. Como? Até quando? Associações imprecisas, que ao mesmo tempo demandam tanta energia e acabam caindo em um lugar melancólico e de total desbrio. Perplexa obsessão entre barreiras, significações e projeções, que se perde em meio a multiplicidades sem solução e uma instabilidade temporal.
“A coisa mais bela da minha construção é o seu silêncio. Certamente ele é enganoso. Pode ser interrompido de repente, e então tudo se acabou. Por enquanto, porém, ele ainda continua. Durante horas posso me esgueirar pelos meus corredores, sem ouvir outra coisa senão, algumas vezes, o zunido de algo pequeno, que me aponta a necessidade de alguma reforma. De resto, tudo quieto. Lá eu durmo o doce sono da paz, do desejo pacificado, do alvo atingido de possuir uma casa. Pobres andarilhos sem casa, nas estrada do campo, nas florestas, no melhor dos casos escondidos num monte de folhas ou na matilha dos camaradas, entregues aos estragos do céu e da terra! Estou aqui, deitado num recinto garantido por todos os lados.
Mas a constante preocupação com preparativos de defesa determina que meus pontos de vista sobre o emprego da construção para esses fins se alterem ou evoluam, embora dentro de limites estreitos. Parece-me muitas vezes perigoso basear a defesa inteiramente em um único lugar, pois a multiplicidade da construção me oferece múltiplas possibilidades e soa mais conforme à prudência distribuir um pouco as provisões e abastecer com elas também certos lugares menores. E qualquer desses novos planos exige, entretanto, um trabalho pesado de transporte. Tenho de fazer novos cálculos e depois me ponho a arrastar a carga de um lado para o outro. Sem dúvida posso fazer isso com tranquilidade e sem pressa excessiva. Pior é quando geralmente ao acordar assustado me parece às vezes que a atual distribuição é completamente falha. Que ela pode provocar grande perigos e precisa ser corrigida o mais rápido possível, sem consideração por sonolência e cansaço. Aí eu me apresso, voo, não tenho tempo para cálculos, porque quero executar um plano novo e exato. Agarro arbitrariamente o que me vem aos dentes. Arrasto, puxo, suspiro, gemo, tropeço, e qualquer mudança do estado presente, que eu julgo super perigoso, me satisfaz.
Até que aos poucos, com o despertar pleno, vem a sobriedade e eu mal compreendo a afobação. Respiro fundo a paz da minha casa, que eu mesmo perturbei.” (p. 36) (Franz Kafka)
O medo, o mundo, ou um mundo à parte, um mundo evocado. Identificação por um empenho que não encontra a saída entre simulações. Sinais de uma invasão ruidosa perturbadora. Impulso inesgotável de tentar compreender com uma energia obsessiva que demanda tanto, e com isso gera inação. Hesitação, alvoroço de pensamentos que tenta dar conta do inalcançável. Sensação desoladora de perda de matizes e do estabelecimento de pseudo-soluções binárias: ou se pensa que é necessário um salto do abismo de um futuro nebuloso, ou se aprisiona tendo diante de si um grande passado pela frente. Quando a mudança é despedida, e cada despedida é abandono.
“E se acontecesse um grande ataque? Que projeto de entrada poderia me salvar? A entrada pode enganar, desviar, torturar o agressor; esta também faz isso em caso de necessidade. Mas um ataque realmente grande eu preciso tentar rebater com todos os recursos do conjunto da construção e todas as forças do corpo e da alma — isso é evidente. Portanto, também essa entrada pode ficar aqui. A construção tem tantas fraquezas impostas pela natureza, que ela pode conservar mais esta, criada pelas minhas mãos, embora só reconhecida posteriormente, mas de modo tão claro. Com tudo isso, decerto não está dito que esse defeito de tempos em tempos, ou talvez sempre, me inquieta. Quando nos meus passeios usuais desvio desta parte da construção. Isso acontece principalmente porque a visão dela me é dasagradável, porque nem sempre quero examinar a falha de um edifício, mesmo que ela transtorne demais minha consciência.
A construção me ocupa muito a cabeça. Saí correndo da entrada, mas logo estou de volta. Procuro um bom esconderijo e vigio a entrada da minha casa — desta vez do lado de fora — durante dias e noites. Pode parecer tolo: isso me dá uma alegria indizível e me tranquiliza. É como se não estivesse diante da minha casa, mas de mim mesmo dormindo e tivesse a felicidade de poder ao mesmo tempo dormir profundamente e me vigiar com brio. De certa maneira, tenho o privilégio de ver os fantasmas da noite não só no desamparo e na confiança bem-aventurada do sono, mas de encontrá-los também na realidade, em plena força da vigília e serena capacidade de julgamento. E descubro que, para mim, as coisas curiosamente não estão tão mal quanto muitas vezes acreditei, e na certa vou acreditar quando descer minha morada.” (p. 41) (Franz Kafka)
Cortes, rupturas e a perda das proteções. Uma alma submersa em um mar revolto que tenta dar conta de uma instabilidade que ganha contornos reveladores de uma ideia de existência, e se equilibrar em cima de um muro frágil, entre o empenho e a hesitação. Uma realidade reduzida a uma construção que se perde entre seu início e seu fim, num subterrâneo exploratório de um inconsciente ao mesmo tempo denso e impreciso.
“Houve épocas felizes em que quase confiei a mim mesmo que a inimizade do mundo contra mim talvez tivesse cessado ou amainado, ou que a força da construção me punha acima da luta de extermínio travada até então. Quem sabe a construção proteja mais do que jamais pensei ou ouso pensar no seu interior. […] E tenho vontade de me despedir de tudo, de descer à construção e nunca mais voltar, deixando as coisas tomarem seu curso e não as detendo através de observações inúteis. Mal acostumado porém, por ter visto tanto tempo tudo o que se passou acima da estrada, é muito penoso para mim, agora, efetuar o procedimento de uma descida que faz alarde e não saber o que acontecerá em todo o espaço atrás das minhas costas. […] Faço as mais variadas experiências boas e más, mas não encontro uma lei geral ou um método infalível para a descida. Em consequência, ainda não desci pela entrada real e me desespero por ter de fazê-lo em breve. Não muito distante da decisão de ir pra longe, de retomar a velha vida inconsolável que não tinha segurança alguma, que era uma só plenitude indiferenciada de perigos e que por isso não deixava ver e ter, tão nitidamente o perigo isolado, como sempre ensina o confronto entre a minha construção e a vida aqui fora. […] Com isso me perco em reflexões técnicas, começo de novo a sonhar meu sonho de uma construção absolutamente perfeita, o que me acalma um pouco: de olhos fechados vejo com encanto possibilidades de construções claras e menos claras para entrar e sair sem ser notado.” (p.51) (Franz Kafka)
Como seguir o fluxo do rio sem ser involuntariamente lançado para alguma das margens? Entre o desespero e a melancolia, tentar fluir percebendo que algo sempre se perde. Mesmo que você não saiba o que, nem como. De sobressalto, o desejo se transforma em ameaça, e vem o questionamento, a angústia e até a dúvida entre o que é fantasia, realidade, fuga e enfrentamento. Toda escolha implica perda, e para estar onde estou, existe um lugar sem mim.
“Sucedeu então que, numa pausa do trabalho — na minha vida sempre fiz pausas demais -, eu estava deitado entre os montes de terra e subitamente ouvi um ruído a distância. Jovem como era, fiquei mais curioso do que amedrontado com aquilo. Larguei o serviço e me pus a escutar. […] Podia discernir bastante bem que se tratava de alguma escavação semelhante a minha, ela tinha um som um pouco mais fraco, mas eu não era capaz de saber quanto. No caso, devia ser atribuído a distância. Embora ansioso, no geral permaneci frio e calmo. Talvez eu esteja em alguma construção alheia e o dono agora cave o seu caminho até mim, pensei comigo mesmo. […] O curso posterior da coisa não me trouxe nenhuma apreensão especial. só interpretá-la é que não era fácil. Se aquele que estava cavando; realmente se dirigia a mim porque tinha me ouvido cavar ou se tomava outro rumo. Então não era possível determinar se ele tinha feito isso porque eu havia deixado, com a minha pausa, sem nenhum ponto de referência no seu caminho, ou se ele mesmo mudara de plano. Mas talvez eu tivesse me enganado e, na verdade, ele nunca se orientara contra mim […] Evidentemente, uma coisa dessas não se alcança através de negociações, mas tão-somente pelo próprio siso ou pela coação que fosse exercida por mim. Em ambos os sentidos, será decisivo. Quanto mais medito sobre isso, tanto mais improvável me parece que ele tenha alguma vez me ouvido; é possível, apesar de inimaginável, que disponha de algumas informações sobre mim, mas de resto ele nunca me escutou. Enquanto eu não tinha conhecimento dele, ele não seria capaz de me ouvir, pois o meu comportamento era silencioso: não há nada mais quieto do que o reencontro com a construção; depois, quando fiz as escavações experimentais, ele poderia ter-me escutado, embora minha maneira de cavar produza pouco rumor; se ele, porém, me ouviu, eu deveria ter notado alguma coisa — o animal precisaria pelo menos enquanto eu trabalhava, parar de vez em quando e prestar atenção. Mas tudo continuou inalterado.” (p. 60) (Franz Kafka)
Créditos:
Texto, Roteiro, Ilustrações, Trilha Sonora e Edição:
Rodolfo Quinafelex
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